Poemas de Gregório de Matos Guerra


Seleção de poemas de Gregório de Matos Guerra


POEMAS ESCOLHIDOS, GREGÓRIO DE MATOS: SELEÇÃO E

ORGANIZAÇÃO DE JOSÉ MIGUEL WISNIK, 2010.

O autor

Gregório de Matos

Gregório de Matos e Guerra nasceu da Bahia em 20

de dezembro de 1633 (ou 36). Terceiro filho de um

fidalgo português, dono de dois engenhos no recôncavo

baiano e de 130 escravos. O irmão mais velho de Gregório,

Pedro, foi expulso da Companhia de Jesus por

escândalos amorosos e virou o feitor das fazendas do

pai. Outro irmão, Eusébio de Matos, padre, também

foi expulso da ordem jesuítica – Eusébio era admirado

pelo padre Antônio Vieira como orador.

Gregório formou-se em Direito na Universidade de

Coimbra, foi juiz em Lisboa, ficou amigo do rei Pedro

II e começou na poesia imitando os versos de Camões

– século XVI, e depois, parodiando (ou plagiando) os

versos barrocos dos espanhóis Quevedo e Gôngora.

Casou-se em Portugal e enviuvou. Retornou ao Brasil

em 168,1 a convite do Bispo da Bahia, e foi nomeado

vigário-geral e tesoureiro-mor da diocese. Por causa de

desavenças, invejas e jogo político, o bispo desligou-o

do cargo eclesiástico. Casou-se com a bela Maria dos

Povos, vendeu sua herança e torrou o dinheiro. Advogou

por uns tempos, mas sem sucesso.

Um caso do advogado Gregório: um sujeito que

comprou o cargo de juiz na Vara de Igaraçu, processou

outro por não chamá-lo de juiz. Defendendo o réu,

argumentou o poeta: “Se tratam Deus por Tu, / e chamam

El-Rei por vós, / como chamaremos nós ao juiz

de Igaraçu? / Tu, e vós, e vós, e tu?”

Andou pelo recôncavo como cantador itinerante.

Nesse tempo, deixou de lado o lirismo cortês para

ingressar na poesia erótico-satírica; aliás, a virulência

de sua sátira lhe valeu a deportação para Angola. Na

volta, teve que morar em Pernambuco, de boca fechada,

onde morreu em 1696.

(Conta-se que Gregório, na época das sátiras e da

poesia erótica, usava cabeleira postiça, um colete de

pelica e gostava de andar nu. Seu escritório era adornado

com bananas.)

O livro

Poemas escolhidos, Gregório de Matos

“Eu era em Portugal

sábio, discreto, entendido,

poeta melhor que alguns,

douto como os meus vizinhos.

Chegando a esta cidade,

logo não fui nada disto:

porque um direito entre tortos

parece que anda torcido.”

“Eu sou aquele, que os passados

anos cantei na minha lira maldizente

torpezas do Brasil, vícios e enganos.”

O poema seguinte (soneto) foi escrito no final do

século XVII pelo poeta Gregório de Matos e Guerra.

O título é comprido – Moraliza o poeta nos ocidentes

do Sol a inconstância dos bens do mundo – e, genericamente,

evidencia a forma e a temática do estilo

barroco.

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,

Depois da Luz se segue a noite escura,

Em tristes sombras morre a formosura,

Em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acabar o Sol, por que nascia?

Se é tão formosa a Luz, por que não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,

Na formosura não se dê constância,

E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,

E tem qualquer dos bens por natureza

A firmeza somente na inconstância.

Por que esse soneto é barroco?

O poeta utiliza-se da antítese para expressar (ou tematizar)

que tudo na vida e na natureza é passageiro,

transitório, efêmero. Essa expressão é acompanhada

de uma angústia existencial que se faz presente por ele

constatar a marcha inexorável do tempo.

O racionalismo do Renascimento do século XV, antropocêntrico,

cultivava em arte o ideal clássico da luz,

da claridade, da harmonia e do equilíbrio. No entanto,

com os descobrimentos e a revolução comercial, a

Europa mergulhou mais na cobiça, na ambição, nas

guerras, na vulgaridade materialista e na desestabilização

dos valores.

Havia a promessa de um mundo melhor, mas tal

mundo entrou em turbulência. Surge, então, um clima

de desengano, de desequilíbrio, de desconcerto do

mundo. Como consequência, instala-se a relatividade

nos valores, o artista entra em conflito e aparece o

estilo barroco.

O Barroco, como estilo literário, predominou no Brasil

na segunda metade do século XVII (1601–1700) e

traduziu o conflito entre o que adveio do mundo renascentista

– o antropocentrismo – e a religiosidade

medieval pregada pelos jesuítas – o teocentrismo. Em

suma, o Barroco é o conflito entre a razão e o espírito,

mesclado com toda a confusão de valores da época.

De um lado, a razão do homem e os prazeres terrenos;

do outro, a “razão” de Deus e os deveres para com Ele,

segundo a pregação da Igreja.

Características do Barroco

• Oposição, dualismo, polarização, dúvida, dilema:

céu – terra, Deus – homem, espírito – razão, fé –

corpo, luz – treva, claro – escuro, eternidade – efemeridade,

plenitude em Deus – desejos humanos;

• Texto ornamentado com metáforas, hipérboles, inversões

de vocábulos e de elementos sintáticos, antíteses,

paradoxos, contraponto, oposição, dualismo,

anáfora;

• Conflito, deformidade: o homem apresenta-se confuso,

desequilibrado e reflete a instabilidade das coisas

terrenas.

CULTISMO: jogo de palavras, trocadilhos, paranomásias,

assonâncias, anáforas

O todo sem a parte não é todo;

a parte sem o todo não é parte;

mas se a parte o faz todo, sendo parte,

não se diga que é parte sendo todo.

CONCEPTISMO: jogo de ideias feito por silogismo

(tipo de dedução montado com duas premissas e uma

conclusão)

1a. premissa: todos os homens são mortais;

2a. premissa: eu sou homem;

Conclusão: logo, sou mortal.

Mui grande é o vosso amor e o meu delito

Porém pode ter fim todo o pecar

E não o vosso amor que é infinito.

Essa razão me obriga a confiar

Que, por mais que pequei, nesse conflito

Espero em vosso amor de me salvar.

1a. premissa: o amor infinito de Cristo salva o pecador;

2a. premissa: eu sou pecador;

Conclusão: logo, espero salvar-me.

Embora Gregório tenha sido predominantemente

cultista, em muitos poemas se mesclam cultismo e

conceptismo.

Vários críticos da obra de Gregório de Matos identificam

muitos poemas como plágios, mas há críticos

que afirmam tratar-se de paródias, imitações, formas

paralelas ou intertextualidades comuns na poética dele

e de outros da época.

MODELOS DE GREGÓRIO DE MATOS

1 – Camões – poeta português renascentista (autor de

Os lusíadas e de muitos sonetos)

2 – Petrarca (1304–1374) – poeta italiano, considerado

o inventor do soneto

3 – Quevedo (1580 –1645) – poeta conceptista

espanhol, amigo de Cervantes (e inimigo de Gôngora)

– quevedismo

4 – Gôngora (1561 –1627) – poeta cultista espanhol

(fescenino) – gongorismo

5 – Lope de Vega (1562 –1635) – poeta e dramaturgo

espanhol

6 – Conderón de la Barca (1600–1681) – poeta e

dramaturgo espanhol, autor de A vida é sonho, em que

tematiza a efemeridade.

Na coletânea Poemas escolhidos de Gregório de Matos,

o crítico José Miguel Wisnik dividiu os poemas

desta forma:

1 – Poesia de circunstância: a realidade circundante,

a Bahia, o Recôncavo, o meio social, a cidade. Aqui a

sátira social, ou a poesia graciosa, e também a poesia

encomiástica (de elogio, de louvor).

2 – Poesia amorosa: poesia lírica, ou erótico-cômica

e fescenina.

3 – Poesia religiosa: a que tematiza a culpa e o perdão,

a vida em trânsito.

Na poética lírico-amorosa de Gregório de Matos,

estão presentes o cultismo e a consciência da transitoriedade

das coisas terrenas.

 

À MARIA DOS POVOS

Discreta e formosíssima Maria,

Enquanto estamos vendo a qualquer hora,

Em tuas faces a rosada Aurora;

Em teus olhos e boca, o Sol e o dia:

Enquanto com gentil descortesia,

O ar, que fresco Adônis te namora,

Te espalha a rica trança brilhadora,

Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade

Que o tempo trata a toda ligeireza

E imprime em toda a flor sua pisada.

Ó não aguardes que a madura idade,

Te converta essa flor, essa beleza,

Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

Nesse soneto, em decassílabo e rimas interpoladas

(abba),o poeta também aconselha Maria dos Povos a

aproveitar a vida enquanto ela é jovem e bela. Aqui,

a beleza da mulher e a da natureza se manifesta por

metáforas; essa construção tem a finalidade de exaltar

a beleza e reduzi-la ao amor agora. Esse tipo de

conselho (o recorrente horror ao tempo que passa e

destrói toda a formosura) tornou-se tema de muitos

poemas de Gregório de Matos. Trata-se de uma máxima

romana: carpe diem.

A biografia de Gregório confirma que ele, já sessentão,

casou-se com Maria dos Povos, mulher bem mais

nova que ele. Daí, ele também poetizar contrariamente

ao carpe diem: “Hoje poderei / convosco casar / e hoje

consumar / amanhã não sei.”

Esta poesia lírico-amorosa de Gregório também trata

dos choques entre o ascetismo e o sensualismo, o

espírito e a matéria, fazendo os contrários passarem

por uma série de transformações e aproximações que

os faz inseparáveis: a mulher como anjo e flor, de antítese

e paradoxo: “Sois anjo, que me tenta, e não me

guarda.”

 

Anjo no nome, Angélica na cara!

Isso é ser flor, e anjo juntamente;

(...)

Matem-me, disse eu vendo abrasar-me,

Se esta a cousa não é, por encarecer-me

Sabia o mundo, e tanto exagerar-me;

Olhos meus, disse então por defender-me,

Se a beleza heis de ver para matar-me

Antes olhos cegueis, do que eu perder-me.

Esse contraponto entre ascetismo e sensualismo

criou dualidades como paixão e freio, mundo interior

e exterior:

Ardor em firme coração nascido;

Pranto por belos olhos derramados;

Incêndio em mares de água disfarçado;

Rio de neve em fogo convertido;

Tu, que em um peito abrasas escondido;

Tu, que em um rosto corres desatado;

Quando fogo, em cristais aprisionado;

Quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo como passas brandamente,

Se és neve, como queimas com porfia?

Mas, ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,

Como quis que aqui fosse a neve ardente,

Permitiu parecesse a chama fria.

Fogo e água, paixão e pranto, neve ardente, chama

fria são opostos que se tornam oxímoros (palavras que se

opõem: música silenciosa, obscura claridade). O escritor

barroco procura unir os opostos, transformar a diferença

em oposição, a oposição em simetria e a simetria em

identidade. Para ele, o diferente se torna idêntico, o outro

se transforma em o mesmo. Como um jogo de espelhos,

nesse poema, água e fogo, paixão (o que se sente) e freio

(o que se expressa) viram simetria e igualdade.

 

De todos os textos de amor, o soneto Admirável

expressão de amor mandando-se-lhe perguntar como

passava é o mais significativo, porque nele o poeta

joga com os contrários da ideia de amor.

 

Aquele não sei quê, que Inês de assiste

No gentil corpo, na graciosa face,

Não sei donde te nasce, ou não te nasce,

Não sei onde consiste, ou não consiste.

Não sei quando, ou como arder me viste,

Porque Fênix de amor me eternizasse,

Não como renasce, ou não renasce,

Não sei como persiste ou não persiste.

Não sei como me vai, ou como ando,

Não sei o que me dói, ou porque parte

Não sei se vou vivendo ou acabando.

Como logo meu mal hei-de contar-te

Se de quando a minha alma está penando,

Eu mesmo, que o padeço, não sei parte.

Imitação de um poema de Camões (século XVI)

sobre o vago sentimento de indefinição amorosa,

o famoso “não sei quê”, recorrente na poesia da

renascentista e barroca.

As estrofes seguintes são do poema Definição de

amor, composto de 54 estrofes (quartetos).

(...)

Uma dor, que não se cala,

Pena, que sempre atormenta,

Manjar, que não enfastia,

Um brinco, que sempre enleva. (...)

Enfim o Amor é um momo,

Uma invenção, uma teima,

Um melindre, uma carranca,

Uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago,

Um arrufo, e uma guerra,

Hoje volta, amanhã torna,

Hoje solda, amanhã quebra.

(...)

Arre lá com tal amor!

Isto é amor? É quimera,

Que faz de um homem prudente

Converter-se logo em besta.

(...)

Tudo uma bebedice,

Ou tudo uma borracheira,

Que se acaba co’o dormir,

E co’o dormir se começa.

O amor é finalmente

Um embaraço de pernas,

Uma união de barrigas,

Um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas,

Uma batalha de veias,

Um reboliço de ancas,

Quem diz outra coisa, é besta.

 

POESIA SATÍRICA (Daí O Boca do Inferno)

 

Segundo José Miguel Wisnik, a sátira de Gregório

registra vários pontos de tensão: a crise econômica

pela qual passava a Bahia; a debilidade das Câmaras;

a ascensão dos comerciantes portugueses; a opressão

da Colônia. A par disso, há, na Bahia, um poeta culto,

que vivera na corte portuguesa em companhia de letrados,

mas que, aqui, viu-se em uma terra de iletrados.

Descreve o que era realmente naquele tempo a cidade

da Bahia de mais enredada por menos confusa.

A cada canto um grande conselheiro,

Que nos quer governar cabana e vinha,

Não sabem governar sua cozinha,

E querem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um frequente olheiro,

Que a vida do vizinho, e da vizinha

Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,

Para levar à Praça e ao Terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,

Trazidos pelos pés os homens nobres,

Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,

Todos, os que não furtam, muito pobres,

E eis aqui a cidade da Bahia.

Pondo os olhos primeiramente em sua cidade, conhece

que os mercadores são o primeiro móvel da ruína,

em que arde pelas mercadorias inúteis e enganosas. A

sátira (imita o português Rodrigues Lobo) é dirigida contra

a passividade dos baianos e os apetites do comércio

colonial, o “sagaz Brichote” que deixava em nosso porto

“drogas inúteis” em troca de “açúcar excelente”. Gregório

recorria à paródia para o seu anticolonialismo. Há

mais: o contraponto passado versus presente dá ao texto

um passado idealizado. Há o decassílabo, as rimas

opostas, a paranomásia e a assonância.

Triste Bahia, oh quão dessemelhante

Estás e estou do vosso antigo estado

pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado

rica te vi eu já, tu a mim abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante

Que em tua larga barra tem entrado

A mim foi-me trocando e tem trocado

Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente

Pelas drogas inúteis, que abelhuda

Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh, se quisera Deus de repente

Um dia amanheceres tão sisuda

Que fora de algodão o teu capote!

Epílogos – certamente o texto mais musicado, teatralizado

e reproduzido de Gregório de Matos. O poeta

critica severamente a sociedade da época: o comércio,

a justiça, a Igreja, a administração pública, os caramurus.

O jogo de palavras, típico da poesia barroca,

manifesta-se nas perguntas, nas respostas e nas rimas;

também na mudança de abstrato para concreto

com verbos de ação. A rima vertical nos tercetos

transforma-se em horizontal nos quartetos; os versos

são dispersos nos tercetos e sintetizados nos quartetos

> disseminação e recolho > técnica muito usada por

Gregório de Matos.

Que falta nesta cidade ?........................ Verdade.

Que mais por sua desonra? ...................... Honra.

Falta mais que se lhe ponha? ................Vergonha.

O demo a viver se exponha,

Por mais que a fama a exalta,

Numa cidade onde falta

Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste sacrócio? .................. Negócio.

Quem causa tal perdição? .................... Ambição.

E o maior desta loucura? ......................... Usura.

Notável desaventura

De um povo néscio e sandeu,

Que não sabe o que perdeu

Negócio, ambição usura.

Quais são seus doces objetos? ................. Pretos.

Tem outros bens mais maciços? ............ Mestiços.

Quais deste lhe são mais gratos? ............ Mulatos.

Que ao demo os insensatos,

Dou ao demo a gente asnal,

Que estima por cabedal

Pretos, mestiços, mulatos.

(...)

E que justiça a resguarda? ................... Bastarda.

É grátis distribuída? ............................. Vendida.

Que tem que a todos assusta? ................. Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa

O que El-Rey nos dá de graça,

Que anda a justiça na praça

Bastarda, vendida, injusta.

(...)

E nos frades há mangueiras? ....................Freiras.

Em que ocupam os serões? ................... Sermões.

Não se ocupam em disputas? ................... Putas.

Com palavras dissolutas

Me incluís, na verdade,

Que as lidas todas de um frade,

São freiras, sermões e putas.

O açúcar já se acabou?............................ Baixou.

E o dinheiro se extinguiu?.......................... Subiu.

Logo já convaleceu?............................... Morreu.

A uma freira, que, satirizando a delgada fisionomia

do poeta, chamou-lhe “Pica-flor”.

Décima

Se Pica-flor me chamais

Pica-flor aceiro ser

Mas resta agora saber,

Se no nome, que me dais,

Meteis a flor, que guardais

No passarinho melhor!

Se me dais este favor,

Sendo só de mim o Pica,

E o mais vosso, claro fica,

Que fico então Pica Flor.

Aos principais da Bahia chamados os caramurus

– o vocabulário indígena está presente em vários poemas

desta coletânea de José Miguel Wisnik.

Há cousa como ver um Paiaiá

Mui prezado de ser caramuru,

Descendente de sangue de tatu,

Cujo torpe idioma é cobepá.

A linha feminina é carimá

Moqueca, pititinga, caruru,

Mingau de puba, e vinho de caju

Pisado num pilão de Piraguá.

A masculina é um aricobé

Cuja filha cobé um branco pai

Dormiu num promontório de Passé.

O branco era um marau, que veio aqui,

Ela era uma índia de Maré,

Cobepá, aricobé, cobé, pai.

• caramuru: branco importante

• paiaiá: pajé

• cobepá: dialeto da tribo cobé – cercanias de Salvador (BA)

• carimá ou carimã: bolo de mandioca

• pititinga: enchova

• caruru: guisado de peixe, camarão etc.

• aricobé: tribo

• cobé: descendente de índio

Contemplando nas cousas do mundo desde o seu

retiro, lhe atira com seu apage, como quem a nado

escapou da tormenta (poema montado com aforismos,

sentenças e moralismo. Porém, a seriedade do começo

do soneto é trocada por jocosidade no jogo de rimas,

nas aliterações, no trava-língua do verso 12 e na sequência

de rimas do verso 14).

Neste mundo é mais rico, o que mais rapa;

Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;

Com sua língua ao nobre o vil decepa:

O velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:

Quem tem mão de agarrar ligeiro trepa;

Quem menos falar pode, mais increpa:

Quem dinheiro tiver, pode ser papa.

A flor baixa se inculca por tulipa;

Bengala hoje na mão, ontem garlopa.

Mais isento se mostra, o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripa,

E mais não digo, porque a musa topa

Em apa,epa, ipa,opa,upa.

*bengala ... garlopa: fidalgo ... pobre

Ao mesmo Desembargador Belchior da Cunha Brochado

(esta é a primeira estrofe de um soneto de elogio.

Nele, fica evidente o jogo de rimas em que o poeta

explora sonoridades e faz uma distribuição gráfico-espacial

que se assemelha, na poesia contemporânea,

à espacialidade da poesia concreta (concretismo) e

também à espacialidade e à atomização de vocábulos

e versos do poeta Ferreira Gullar, presentes no livro

Muitas vozes.

POESIA RELIGIOSA

A N. Senhor Jesus Cristo com atos de arrependido

e suspiros de amor (o artifício poético deste soneto é a

anadiplose: o final de um verso é o começo do seguinte)

Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,

É verdade, meu Deus, que hei delinquido,

Delinquido vos tenho e ofendido,

Ofendido vos tem minha maldade.

Maldade, que encaminha à vaidade,

Vaidade, que todo me há vencido;

Vencido quero ver-me, e arrependido,

Arrependido de tanta enormidade.

Arrependido estou de coração,

De coração vos busco, dai-me os braços,

Abraços que me rendem vossa luz.

Luz, que claro me mostra a salvação,

A salvação pretendo em tais abraços,

Misericórdia, amor, Jesus, Jesus.

A cristo nosso Senhor crucificado (A irreverência

de Gregório de Matos também ocorre em poemas religiosos

como este. Trata-se de um negaceio, na medida

em que o eu lírico provoca a divindade de Deus

chamando-o para o perdão necessário e na medida em

que, para o eu lírico, o perdão lisonjeia a Deus. Ora,

caso Deus não o perdoe, perde a glória da lisonja. O

eu lírico é a ovelha desgarrada e Deus não será Deus

se não lhe perdoar.)

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,

Da vossa alta clemência me despido;

Porque quanto mais tenho delinquido

Vos tem a perdoar mais empenhado.

Se basta a voz irar tanto pecado,

A abrandar-vos sobeja um só gemido:

Que a mesma culpa que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada

Glória tal e prazer tão repentino

Vos deu, como afirmais na sacra história.

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,

Recobrai-a; não queirais, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Buscando a Cristo um pecador, com verdadeiro arrependimento

(a mobilidade do eu lírico no 1º verso

tende à imobilidade do último verso na medida em que

busca o perdão, a união e a firmeza. Porém a aparente

imobilidade de Cristo crucificado tende à mobilidade

na medida em que o eu lírico o dinamiza, porque, para

ele, o perdão é uma forma de ação. Há irreverência

porque o eu lírico não dá chance a Deus – Ele tem que

lhe perdoar. A anáfora (repetição no início de versos

subsequentes) é recurso do cultismo).

A vós correndo vou, Braços sagrados,

Nesta cruz sacrossanta descobertos,

Que para receber-me estais abertos

E por não castigar-me estais cravados.

A vós, Divinos olhos, eclipsados,

De tanto sangue e lágrimas cobertos,

Pois para perdoar-me estais despertos,

E por não condenar-me estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me:

A vós, Sangue vertido para ungir-me:

A vós, Cabeça baixa por chamar-me.

A vós, Lado patente, quero unir-me:

A vós, Cravos preciosos, quero atar-me,

Para ficar unido, atado e firme.

Desenganos da vida humana metaforicamente

(Gregório usa as metáforas nau (navio), rosa e planta

para discorrer sobre o tema religioso mais caro ao Barroco:

a rapidez com que as “coisas” humanas” desaparecem

– é a efemeridade, a transitoriedade).

É a vaidade, Fábio, nesta vida,

Rosa, que da manhã lisonjeada,

Púrpuras mil, com ambição dourada,

Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,

Por mares de soberba desatada,

Florida galeota empavesada,

Sulca ufana, navega destemida.

É nau, que em breve ligeireza,

Com a presunção de Fênix generosa,

Galhardias apresta, alentos preza.

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa,

De que importa, se aguarda sem defesa

Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?

Na coletânea Poemas escolhidos há poemas narrativos,

poemas que criticam certos desafetos de Gregório,

como freiras, governadores, juízes, senhores de

engenho, mulheres, prostitutas, padres, e frades, mas

também há vários poemas de elogio (encomiástico) a

pessoas das suas relações. Em alguns poemas, Gregório

elogia praias, comidas, festas.

A DESPEDIDA DO MAU GOVERNO QUE FEZ O

GOVERNADOR DA BAHIA

Senhor Antão de Sousa de Menezes,

Quem sobe ao alto lugar, que não merece,

Homem sobe, asno vai, burro parece,

Que o subir é desgraça muitas vezes.

A fortunilha, autora de entremezes

Transpõe em burro o herói que indigno cresce:

Desanda a roda, e logo homem parece,

Que é discreta a fortuna em seus reveses.

Homem sei eu que foi vossenhoria,

Quando o pisava da fortuna a roda,

Burro foi ao subir tão alto clima.

Pois, alto! Vá descendo onde jazia,

Verá quanto melhor se lhe acomoda

Ser homem embaixo do que burro em cima.

 

Gregório de Matos – Poemas

Gregório de Matos – O Boca do Inferno – Poemas Originais Selecionados

Triste Bahia

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso
antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas
drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!


·         Livros

*

A Jesus Cristo Nosso Senhor

Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada
Gló
ria tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra Histó
ria:

Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada;
Cobrai-me; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.


*
À sua mulher antes de casar

Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada
Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que
fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh, não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.


 

*

Buscando o Cristo crucificado um pecador com verdadeiro arrependimento

A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos,
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas cobertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, pra chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.


gregorio-de-matos-2

*

Define a sua cidade

De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro foder.

Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.

Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.


*

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário