Nos ombros de
gigantes mágicos
Processo de transformação da alquimia em química foi mais longo e suave
do que se imagina
CARLOS HAAG | Edição Especial 50 Anos de FAPESP
Reprodução do livro O museu
hermético: Alquimia & Misticismo, de Alexander Roob
Foi preciso muita coragem para Einstein assumir, em plena idade moderna,
que “a ciência sem a religião é coxa e a religião sem a ciência é cega”. Em
especial, a primeira parte da citação ainda provoca calafrios em muitas mentes
científicas que associam de forma ortodoxa ciência à ideia de progresso: assim,
os antigos conheceram pior do que os medievais e estes pior que os modernos,
totalmente libertos de qualquer “obscurantismo” religioso. “Em especial, há a
visão de uma estreita passagem da alquimia para a química, entre meados dos
anos 1600 e finais dos anos 1700, cujas marcas seriam a publicação de Químico
cético, de Boyle, livro que teria iniciado a química moderna em 1661, e o
‘gran finale’ de Lavoisier em seu Tratado elementar de química, em
1789”, explica a professora Ana Alfonso-Goldfarb, do Centro Simão Mathias de
Estudos em História da Ciência (Cesima), da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP).
“Não se pode dissociar o desenvolvimento da ciência de aspectos
religiosos, assim como o saber alquímico e tradição hermética não foram
eliminados pela revolução científica, mas conviveram por longos séculos. Não se
trata de rupturas, mas de permanências e transformações lentas de conhecimentos
antigos”, analisa a pesquisadora que, ao lado da professora Márcia Ferraz,
também do Cesima, trouxe à luz uma importante rede de discussões sobre os
princípios da matéria, que se estendeu até, pelo menos, o século XVIII, no
projeto temático Revelando os processos naturais através do laboratório: a
busca por princípios materiais nos três reinos até a especialização das ciências
no setecentos, apoiado pela FAPESP. “Mentes notáveis de uma
instituição como a Royal Society, apesar de realizarem procedimentos próximos
aos da ciência moderna ainda viam no laboratório ‘iluminista’ o ‘olhar de
Deus’”, observa Márcia Ferraz. Foi, aliás, mergulhando nos arquivos da
sociedade britânica que as duas estão colocando cada vez mais em suspeição a
crença de que a alquimia, baseada em mistérios, não resistiu à passagem para um
universo racional e mecanicista, onde qualquer mistério era inadimissível.
“As ideias alquímicas, sob outro nome, ainda intrigaram por muito tempo
grandes figuras hoje associadas à ciência moderna. Essa é a beleza
dessa história: não há uma razão única, mas várias ‘razões’ que souberam
conviver até o século XIX”, analisa Ana. Isso será, aliás, o foco do
desdobramento do temático num novo projeto, também apoiado pela FAPESP e
iniciado agora, que alcançará o oitocentos, período em que, as pesquisas das
professoras confirmaram, se dará o efetivo desmembramento das áreas do saber em
direção a um sistema de organização moderno. “Ao mesmo tempo, e talvez não por
acaso, a noção de princípio ou princípios materiais será superada de muitas
formas, inclusive por meio de variações distantes como foram as novas
concepções de princípios ativos”, afirma Márcia.
Até então, duas vertentes dividiam o interesse dos estudiosos. Uma das
perspectivas concebia a organização da matéria em “princípios reitores”: estes
seriam exclusivos ao reino que constituíam e intransferíveis, mesmo no
laboratório, a outros reinos da natureza. Um segundo grupo, preconizava a
existência de um único princípio que circularia entre os três reinos (mineral,
vegetal e animal), embora agindo de forma distinta em cada um deles. Crença que
datava a tempos aristotélicos, essa ideia se fundamentava na observação de
processos em que materiais de reinos distintos, ao interagirem, pareciam transferir
suas características uns aos outros. Entre os adeptos dessa visão estavam
estudiosos notáveis da primeira modernidade e suas reverberações continuaram a
prevalecer século XVIII adentro.
“Muitas das obras que criaram a ciência moderna estavam num limiar,
captando, por um lado, essa lógica totalizante dos saberes de vozes do passado
e, ao mesmo tempo, iniciando um contato com a nova cosmologia e as novas
ideias”, diz Ana. Para as próprias pesquisadoras, no início, a descoberta de
que homens como Boyle e Newton acreditavam na possibilidade da “pedra
filosofal” provocou uma sensação incômoda. Mas, boas adeptas da razão, os
achados documentais das pesquisadoras no acervo da Royal Society fizeram com
que elas revissem suas crenças e passassem a enxergar os antigos modelos da
nova ciência pelo prisma da época, e não com a visão anacrônica e
“preconceituosa” dos nossos tempos.
Afinal, como desmentir um documento oficial de uma instituição vetusta
que acaba de completar 350 anos de história, em especial nos escritos de Henry
Oldenburg, membro de uma rede europeia de sábios e secretário da recém-criada
sociedade inglesa. “Para os estudiosos da Royal Society não havia nada mais a
se descobrir em seus arquivos, em especial após a catalogação completa do
acervo feita pelo casal Marie e Rupert Hall a partir dos anos 1960”, conta Ana.
As brasileiras, porém, descobriram muito material nos “fundos fechados” do
arquivo, e não foi pouca coisa. O achado mais “espetacular” foi a “receita” do
alkahest, suposto “solvente universal” alquímico que poderia dissolver qualquer
substância, reduzindo-a a seus componentes primários. Isso, nos papéis de
homens “iluminados” pela razão como Oldenburg e Jonathan Goddard, lente da
instituição. A descoberta só confirmava que os “papéis secretos” de Newton, aos
poucos revelados desde os anos 1930, e sua relação com a alquimia, eram a ponta
de um iceberg maior do que o desejável.
“Havia uma segunda agenda na pauta dos novos cientistas e os documentos
mostram, numa forma concisa e quase moderna, que em muitos experimentos havia
concepções e processos ligados a velhos tratados e receituários. Basta ver as
tentativas de refino de ouro com antimônio descritos por Goddard à Royal
Society”, lembra Márcia. Antes de julgar, porém, é preciso conhecer a vinculação,
na época, das ciências da matéria às ciências médicas, lugar preferencial desse
hibridismo entre o antigo e o novo no campo de batalha dos laboratórios. “Os
chamados ‘males da pedra’, a litíase renal, era uma das principais causas de
morte até o século XIX. Nesse contexto, a alquimia se insinuou como tábua de
salvação, já que sua suposta capacidade de ‘abrir’ os materiais mais
resistentes, para extrair sua essência mais pura, poderia dissolver as pedras
do organismo”, observa Ana.
Era preciso encontrar algo com o
poder do ácido sem os seus efeitos colaterais letais para o corpo humano.
“Alkahest e a pedra filosofal, combinados, formariam o remédio ideal: o
primeiro suavizaria os efeitos negativos do ácido e a pedra era o complemento
ideal, pois seria potente o bastante para dissolver até um metal resistente
como o ouro e, ao mesmo tempo, inócuo contra o organismo”, explica Márcia. Não
se pode, porém, negar que a busca desses produtos alquímicos também esteve
ligada ao desejo de produzir ouro, almejado por plebeus e monarcas, e a muito
“filosofismo” esotérico, em voga na Inglaterra puritana. “Encontramos muitos
documentos nos arquivos da Royal Society que revelam uma visão milenarista de
muitos sábios da época”, diz Ana.
Menos vulgar do que o milenarismo medieval, os lentes britânicos
preconizavam a “importação” de judeus dos Países Baixos para a Inglaterra,
promovendo o encontro deles com os puritanos, uma mistura que criaria um “caldo
natural” de onde nasceria o messias capaz de iniciar uma nova era de progresso
científico, educacional e médico, onde todos poderiam se beneficiar dos avanços
feitos nos laboratórios. “Eles queriam tornar tudo o que era incompreensível,
logo ameaçador, em compreensível, via puritanismo, gerando o melhor e mais
racional dos mundos”, conta Ana. Longe de delírio, era um debate que envolveu
intensa troca de cartas entre membros da Royal Society e figuras como Espinoza
e Leibniz. Einstein, que não jogava dados com o universo, tinha lá sua razão.
Ao lado das pesquisas híbridas com a alquimia, todos eram segredos
guardados a sete chaves. “Muitas vezes, havia casos de suborno, espionagem e
roubo de ‘receitas’ alquímicas a mando de Oldenburg, em nome do progresso
científico”, conta a pesquisadora. Essas receitas, porém, levantavam questões
que ajudaram na criação da nova ciência. Afinal, os papéis secretos tinham
ingredientes exóticos ou não os descreviam com precisão. Assim, como obter o
material certo, puro o suficiente, capaz de fazer o receituário funcionar?
Talvez, o malogro de se conseguir a pedra filosofal, por exemplo, se devesse a
essas imprecisões. “Era a busca da transmutação, mas dentro de procedimentos
que seriam a pedra fundamental da ciência moderna. O laboratório se transforma
no lugar da ‘prova’. Antes usado para criar produtos, agora, entre os séculos
XVII e XVIII, ele passa a servir como centro de padronização de experimentos”,
observa Ana.
A partir de questões alquímicas, iniciou-se a discussão sobre a
necessidade de uma ciência universal, em cujo centro estava a preocupação com a
capacidade de reproduzir um dado experimento, em se estabelecerem parâmetros
científicos, um meio do caminho entre aspectos místicos e ciência. “O
desenvolvimento gradativo da imprensa, que permitiu a maior circulação de informações,
e as trocas entre os que haviam, tradicionalmente, guardado informações
sigilosas, extraídas da antiga literatura e portadoras de seus vestígios, foi
um fator de peso para o nascimento da nova ciência química”, analisa Ana. “Em
troca das buscas obsessivas por materiais lendários, o laboratório acabou
garantindo marcadores excelentes para os progressos de análise e síntese. Acima
de tudo, pensava-se garantir através deles uma expressão material e visível
para o estudo dos princípios ou bases elementares que, de outra forma, pareciam
inatingíveis”, completa Márcia. Foram necessários mais de dois séculos para que
o velho laboratório do alquimista se transformasse no do químico, com seus
padrões modernos. Tempos em que a ciência tentava não mancar e parte da
religião queria enxergar.
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